Quando a teologia desce do púlpito: por que precisamos de uma fé que “suje as mãos”

Quando a teologia desce do púlpito: por que precisamos de uma fé que “suje as mãos”

Há alguns anos, numa conversa com um amigo que atua nos meandros da política nacional, guardei no coração algo que ele me disse: "O problema da religião é que ela sempre chega atrasada aos grandes debates do mundo”. Na época, concordei (e ainda acrescentei algumas críticas). Hoje, depois de anos observando os corredores das igrejas, percebo que o argumento continua válido, mas que há esperança: existe uma teologia que não só chega na hora certa, como muitas vezes chega antes.


O divórcio que ninguém pediu

Vivemos uma estranha esquizofrenia espiritual. De um lado, temos uma fé que se refugia em templos climatizados, falando uma linguagem que só os iniciados compreendem, focada em bem-estar “espiritual”, mensagens motivacionais. Do outro, um mundo que arde em questões urgentes – mudanças climáticas, desigualdade social, crises migratórias, dilemas éticos da inteligência artificial, violência e impunidade – enquanto muitas vozes religiosas permanecem curiosamente mudas ou, pior, oferecendo respostas que soam como ecos de séculos passados, alheias à vida real. 

Essa desconexão não é acidental. É uma ausência intencional dos grandes debates sociais para criar a ideia de que a igreja está “acima” ou “além” das meras questões mundanas. É o resultado de décadas de uma teologia que se contentou em ser espectadora da história, quando deveria ser protagonista da transformação. Como observa o teólogo sul-africano Allan Boesak, "uma fé que não se suja as mãos com os problemas do mundo é uma fé que perdeu sua alma".


Quando a Teologia encontra o mundo real

Mas nem toda teologia escolheu o conforto da irrelevância. Existe uma corrente de pensamento que insiste em fazer as perguntas certas nos lugares certos. É uma teologia contextualizada, uma abordagem que entende que Deus não mora apenas nas alturas, mas caminha pelas ruas empoeiradas da história humana.

Gustavo Gutiérrez não estava apenas escrevendo livros quando formulou a Teologia da Libertação no Peru dos anos 1960. Estava respondendo a uma pergunta que ecoava nas favelas de Lima: "Onde está Deus quando uma criança morre de fome?”. Sua resposta revolucionou não só a teologia, mas influenciou políticas públicas em toda a América Latina e inspirou movimentos sociais que ainda hoje transformam realidades.

Do outro lado do Atlântico, Desmond Tutu não estava apenas pregando quando articulou uma teologia anti-apartheid na África do Sul. Estava forjando as bases éticas que sustentariam a transição democrática de seu país. Sua teologia contextualizada consolou os oprimidos e deslegitimou um sistema inteiro de opressão.


A Teologia que move montanhas (e políticas públicas)

O que esses exemplos mostram é que a teologia contextualizada não é um exercício acadêmico. É uma força que molda realidades. Quando teólogos como Leonardo Boff e Jürgen Moltmann conectaram ecologia e espiritualidade, iam para além da produção de ensaios bonitos: estavam plantando sementes que floresceriam em políticas ambientais e movimentos de sustentabilidade.

Hoje, é possível ver essa influência em lugares inesperados. A Doutrina Social da Igreja Católica, constantemente atualizada por vozes como a do Papa Francisco, tem influenciado debates sobre economia solidária e justiça climática em fóruns internacionais. Teólogas como Marcella Althaus-Reid desafiam estruturas eclesiásticas e paradigmas acadêmicos inteiros sobre gênero e sexualidade.

No Brasil, a obra de teólogos como Rubem Alves e José Comblin alimentou movimentos sociais e ajudou a formar uma geração de líderes que hoje ocupam espaços de poder e influência. A teologia contextualizada brasileira está presente nas discussões sobre políticas de habitação, educação popular e direitos humanos.


Novos horizontes, novos desafios

Mas talvez seja na fronteira entre tradição e inovação que a teologia contextualizada mostre sua face mais fascinante. Pensadores como Brigitte Kahl, com sua abordagem pós-colonial das Escrituras, estão reescrevendo nossa compreensão sobre poder, império e resistência. Seu trabalho sobre Paulo de Tarso como figura anti-império não é apenas exegese bíblica – é uma ferramenta para entender dinâmicas contemporâneas de dominação e libertação.

A teologia que “chega antes” hoje influencia da política ao mercado. É verdade, ainda num ritmo lento, enfrentando diversas oposições e sendo atacada por movimentos fundamentalistas. Mas já não é novidade ver empresas multinacionais e organizações sociais contratarem consultores especializados em ética cristã contextualizada para navegar dilemas sobre inteligência artificial, sustentabilidade e responsabilidade social.


O laboratório do futuro

O que mais me impressiona, como alguém que já transitou entre redação de jornal, universidade e comunidades de fé, é perceber como a teologia contextualizada funciona como um laboratório de futuros possíveis. Quando teólogos como Willie James Jennings repensam questões raciais através de lentes teológicas, vão para muito além de oferecer consolação espiritual: estão criando vocabulários e frameworks que influenciam políticas de diversidade e inclusão.

A teologia feminista de autoras como Elisabeth Schüssler Fiorenza não só empoderou mulheres dentro das igrejas, mas forneceu bases teóricas para movimentos de equidade de gênero que hoje influenciam legislações ao redor do mundo. Em um tempo de espantosos retrocessos eclesiásticos, como a decisão do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil em não permitir mulheres em posições de liderança e mesmo proibir que preguem ou até sirvam a Santa Ceia, discutir teologicamente o papel da mulher não é nem mais urgente: é correr atrás do tempo perdido.


A fé que o mundo precisa

Talvez a maior contribuição da teologia contextualizada seja nos lembrar de que a fé não é um luxo para tempos de paz, mas uma necessidade para tempos de crise. Em um mundo onde algoritmos decidem quem recebe crédito bancário, onde mudanças climáticas forçam migrações em massa, onde a biotecnologia levanta questões sobre o que significa ser humano, precisamos de uma teologia que não apenas observe, mas participe da construção de respostas.

Não se trata de instrumentalizar a fé para fins políticos. Trata-se de reconhecer que uma espiritualidade autêntica sempre foi política, no melhor sentido da palavra. É sobre construir a polis, a cidade humana, de forma que reflita os valores mais profundos de justiça, compaixão e dignidade.

Às vezes, quando termino de ler um bom texto de teologia particularmente provocativo, fico alguns minutos em silêncio. Não é o silêncio do vazio, mas o silêncio de quem acabou de ver o horizonte se expandir. É como se, de repente, a fé deixasse de ser um refúgio privado e se revelasse como uma força pública, capaz de mover não apenas corações, mas também estruturas.

Penso que é isso que o mundo mais precisa hoje: não de uma religião que ofereça respostas fáceis para perguntas difíceis, mas de uma teologia corajosa o suficiente para fazer as perguntas certas nos lugares certos. Uma fé que não tenha medo de sujar as mãos, porque entende que é exatamente aí, na sujeira do mundo real, que o sagrado escolheu habitar.

Outras reflexões do Edu